terça-feira, 26 de setembro de 2017

Felinidades do quotidiano



Há quem diga que tive muita sorte pela família que me calhou. Discordo. Penso que eles é que têm muita sorte por poderem fazer parte da minha vida. Não sou uma simples cadela que se contenta com um pedaço de carne e um mimo esporádico do dono. Aprendi a apreciar as coisas boas da vida (vida de cão não é para mim!). Inicialmente, o meu instinto dizia-me que devia ser submissa e amar incondicionalmente os meus donos. Depois mudei.
Ainda não tinha feito um ano, quando se mudou para a casa do outro lado da rua um casal de meia idade. Com eles veio um gato, o Jeremias. Odeio gatos. Cheiram tão mal! As pessoas que vivem com gatos devem ter constipações crónicas ou o olfato avariado. O meu olfato nem é grande coisa (mais uma prova de que não sou uma cadela vulgar), mas consigo sentir o cheiro a gato a mais de 100 metros! É gatos e atum. Não podem abrir uma lata no rés-do-chão sem que eu comece a salivar! Voltando ao Jeremias… Não conseguia dormir com um gato tão próximo de mim. Até perdi o apetite de tão enjoada que andava com aquele odor. Decidi começar a estudar as rotinas dele, perceber quando costumava ir à rua para forçar um passeio ao mesmo tempo. Talvez se nos cruzássemos e eu o conseguisse intimidar, ele fugisse para longe.
O Jeremias passava os dias de sol numa poltrona junto à janela. Os donos chegavam a casa e ele não se mexia. Nem um rasgo de excitação deixava transparecer. Que animal ingrato, pensava eu. Os donos lá se aproximavam dele e faziam-lhe umas festinhas. Ele abria um olho e voltava a fechar. Nada de acrobacias arriscadas para festejar o regresso dos companheiros. Nem um lambidela atrevida! Arrastava-se da poltrona até à cozinha para cheirar o prato da comida. Só a provava 50% das vezes e raramente terminava a dose que lhe tinha sido dada. Que coisa estranha. Eu fazia competições com a minha sombra para ver quem terminava mais rápido a comida.
Aos poucos, comecei a admirar o Jeremias. Não me interpretem mal, continuo a detestar gatos, mas reconheço que eles sabem viver. Adotei alguns comportamentos felinos: apoderei-me do sofá, onde apanho longos banhos de sol; não me contento com qualquer alimento que me servem (já cheguei a ficar dois dias sem tocar na taça da comida!), aprendi a reagir com indiferença quando sou solicitada em momentos inoportunos (demorei meses a aperfeiçoar os meus suspiros!)… enfim, julgo que estas atitudes me serão úteis nos tempos que se avizinham. Parece que com a chegada do bastardinho haverá menos tempo para mim e eu não quero parecer desesperada por atenção. Vou passar os meus dias de forma mais independente. Talvez deva reduzir a exigência com a comida senão arrisco-me a ficar dias sem comer e ninguém vai notar.
Noori



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